sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

Vidas

Enquanto vago cambaleante e sem destino por ruas em preto e branco, apenas com a madrugada por companhia, a natureza da sociedade humana se insinua para meus olhos sem pudor. Em cada beco há um semelhante a me esperar com uma arma e uma ameaça. Em cada esquina há uma mulher metamorfoseada em objeto a tentar me vender um amor breve e efêmero. Imagens gigantes me ofertam sucesso e felicidade em troca do dinheiro que não tenho. Mendigos dormem encostados nas portas fechadas da salvação cristã. A bebida ajuda a enganar meus sentidos mas ainda não conseguiu roubar meu discernimento... ainda. Uma criança magra tenta colar seu coração despedaçado, sem colo de mãe nem proteção de pai. Eu tento acordar do pesadelo e descubro que talvez ele só me dê trégua quando eu conseguir dormir. A fumaça cria fantasmas que riem de mim. Uma câmera me vigia em cada esquina, mas ninguém me protege. Ninguém está seguro no Estado selvagem de igualdade para todos. Escuto música vindo de algum lugar onde pessoas dançam e riem alheias a isso tudo. Isso não faz parte do mundo delas, apesar de nossos mundos orbitarem ao redor do mesmo Sol. Arrancaram a flor que estava na boca da moça e colocaram uma faca em seu pescoço. A ela só resta rezar para que algum deus mouco não permita uma gravidez indesejada. A criança que nascerá dali não tem culpa do que aconteceu, não tem culpa do mal do mundo, não escolheu nascer, nem tampouco escolheu deixar de nascer. Ela, a criança que nascerá, não tem culpa por não conseguir colar seu coração e a pele rasgada de sua mãe. Ela não tem culpa, dizem, e obrigam a mãe a dar-lhe a “luz”. Talvez se não houvesse tanta luz, também não houvesse tanta cegueira. Um vulto me segue, mas estou quase chegando no meu lar, tão seguro por ter mais grades que uma penitenciária. Resta saber quem será mais rápido: minha mão abrindo todos os cadeados que me separam da crueldade nua do mundo real ou a lâmina do algoz que força essa realidade para dentro do meu coração anestesiado pelas imagens do mundo que me é vendido pela TV.

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